Conselho do CFH aprova Nota do Centro sobre a CPI da Funai e do Incra

08/12/2015 09:50

Nota do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (UFSC) sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada para investigar a atuação da Funai e do Incra

O Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), juntamente com o Departamento de Antropologia, comportando os cursos de graduação e pós-graduação e o Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral (MArquE) vêm publicamente manifestar sua perplexidade e indignação diante dos argumentos presentes no requerimento para a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que ocorreu em 11 de novembro de 2015, no plenário 11 da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional, para investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai – Ministério da Justiça) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra – Ministério do Desenvolvimento Agrário) na demarcação de terras indígenas e de remanescentes dos quilombos.

Nas justificativas para a instalação da CPI os parlamentares que a solicitaram buscam desqualificar o trabalho técnico de antropólogos, historiadores, geógrafos, biólogos e outros profissionais, que realizam os estudos e relatórios que compõem as peças técnicas e científicas que embasam os processos de regularização de terras indígenas e quilombolas, bem como estudos e relatórios de impacto ambiental de empreendimentos. De forma mais direta, a CPI tem como uma de suas metas alegadas “avaliar” o conhecimento produzido pela investigação antropológica nesses processos, cujos profissionais sofrem no texto do citado requerimento acusações infundadas de manipulação, falsificação, ou promoção de invasões de terra, notadamente, antropólogos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), única Instituição de Ensino Superior citada no requerimento de criação da CPI. 

Nesse sentido, em total desrespeito à séria e criteriosa ciência antropológica realizada na UFSC, o requerimento de instalação da CPI declara ter identificado “uma posição ideológica do corpo acadêmico da antropologia da UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA-UFSC” para “promover migrações indígenas, realizando demarcações fraudulentas”. O requerimento alega ainda haver um conluio entre os Departamentos de Antropologia das Universidades, os profissionais da antropologia, os órgãos do Executivo como a Funai e o Incra, ONGs, e o Ministério Público Federal, para resultar em delimitações abusivas e arbitrárias.

O elenco de impropérios e acusações infundadas no requerimento da CPI, contra o conhecimento antropológico e a atuação profissional dos antropólogos, revela não apenas total desconhecimento do corpo teórico-metodológico científico e do código de ética de uma disciplina que registra mais de dois séculos de existência. Ele revela também clara intenção de ignorar, depreciar e distorcer a verdade científica produzida de acordo com os códigos e métodos legítimos nas Ciências Sociais, para desvalidar direitos constitucionalmente constituídos.

Os relatórios circunstanciados de identificação e delimitação de terras indígenas e quilombolas são produzidos no âmbito do executivo federal, pela Funai e Incra respectivamente, e constituem peças técnicas, compostas por estudos multidisciplinares de natureza antropológica, etno-histórica, documental, ambiental, cartográfica e fundiária, cujos procedimentos obedecem à legislação específica. No caso das terras indígenas, por exemplo, o procedimento é regido pelo que determina a Constituição Federal de 1988, o Decreto 1.775/1996 e a Portaria 14/MJ/1996. Os relatórios passam por várias instâncias de análise e decisão, incluindo espaços de defesa de interesses contraditórios ou de contestações, sendo que não há margem a arbitrariedades, abusos, ideologias, violação de registros públicos e/ou de direitos no trabalho antropológico neles desenvolvido.

Além disso, como já ressaltado em nota publicada pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), também refutando os argumentos para a instalação da CPI, é de amplo conhecimento que a atuação de antropólogos em processos de identificação e delimitação de territórios requer não apenas maturidade acadêmica, exigindo-se, especialmente pós-graduação ao nível mínimo de mestrado em Antropologia. Para tanto, pressupõe formação plena e utilização de conceitos, métodos e técnicas da disciplina reconhecida e consolidada, como também maturidade em lidar com complexas situações de conflito, nas quais, muitas vezes, a integridade física e moral dos grupos sociais pesquisados, assim como dos próprios antropólogos, tem sido ameaçada por interesses e forças antagônicas.

Assim, a UFSC repudia fortemente as acusações de alguns parlamentares contra os profissionais da Antropologia, as quais distorcem fatos, invertem imagens, apresentam inverdades, estimulam controvérsias, lançam impropriedades, com objetivo tácito de desqualificar e desautorizar a atividade profissional antropológica. Repudia de forma igualmente contundente os ataques e infâmias contra a Antropologia e profissionais antropólogos e antropólogas desta Instituição Federal de Ensino Superior, que desfrutam de reconhecimento nacional e internacional pela sólida e consistente formação, embasada em apropriado e atualizado arcabouço teórico-conceitual, rigor metodológico, extensa e substantiva pesquisa de campo e documental, e consistentes princípios éticos.

Estudos antropológicos desenvolvidos na UFSC precedem a própria criação da Universidade em 1960, quando ainda eram conduzidos sob a liderança do professor Oswaldo Rodrigues Cabral. Orientada ao conhecimento etnográfico profundo das experiências e dos valores socioculturais dos coletivos humanos, a Antropologia da UFSC foi ao longo das décadas atualizando e aprimorando suas proposições teóricas e seus métodos de investigação. De tal modo, com sólido, acumulado e substantivo conhecimento, constituído e atualizado por seus vários núcleos e laboratórios de pesquisa, a Antropologia da UFSC tem se tornado referência tanto no país como no exterior, como atestam seus múltiplos convênios e redes de pesquisas estabelecidas, a procura por estudantes de múltiplas nacionalidades para cursar tanto a graduação quanto a pós-graduação, assim como a efetividade de programas junto a populações indígenas e quilombolas.

A Antropologia produzida na UFSC tem se destacado não só por excelência intelectual, mas também pela histórica e substantiva contribuição e atuação junto aos vários setores e coletividades da sociedade brasileira com os quais mantêm interlocução e, de forma mais direta, do estado de Santa Catarina. Entre elas, citamos os convênios estabelecidos ainda no início da década de 1970, pela equipe coordenada pelo Professor Emérito da UFSC, o antropólogo Silvio Coelho dos Santos, falecido em 2008, com a Eletrosul Centrais Elétricas S.A. (Eletrosul) para a realização de levantamento de identificação dos efeitos sobre as áreas indígenas atingidas pela implantação da Hidrelétrica Machadinho, na bacia do rio Uruguai, nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, como também a definição de medidas mitigadoras e compensatórias. Essa parceria de trabalho se estendeu pelas décadas de 1980 e 1990.

A atuação do Emérito professor e sua equipe também se destacou no âmbito do Direito, com interlocução direta com várias instituições jurídicas brasileiras que tratavam de questões relacionadas a direitos indígenas.  Promoveram vários simpósios, reunindo além de profissionais da Antropologia, também juízes, procuradores, advogados, que resultaram em publicações de referência no país sobre o tema, como “O índio perante o Direito”, em 1982, e “Sociedades Indígenas e o Direito”, em 1985[1].

Em continuidade, antropólogos da UFSC promoveram, em 2000, a “Oficina sobre Laudos Antropológicos”, que resultou no documento de trabalho conhecido como “Carta de Ponta das Canas”, no qual foram estabelecidos parâmetros necessários à implementação do Acordo de Cooperação Técnica para elaboração de laudos periciais antropológicos, que foi assinado entre a Associação Brasileira de Antropologia e a Procuradoria Geral da República. Cinco anos depois, em 2005, o documento foi publicado em um volume intitulado “Laudos periciais antropológicos em debate”, tornando-se outra referência nacional sobre a temática[2]. Mais recentemente, sob a coordenação da ABA, antropólogos da UFSC também participaram da elaboração do documento intitulado “Protocolo de Brasília –Laudos Antropológicos: condições para o exercício de um trabalho científico”[3], que condensa de forma clara os princípios firmados no corpo teórico da disciplina, em seus métodos e preceitos éticos.

Trabalhos como esses evidenciam os esforços de uma disciplina que dialoga diretamente com formuladores e executores do Direito, assim como de políticas públicas, demonstrando claramente suas preocupações com a legalidade de suas proposições, e não em promover falsificações.

Contudo, não é só com povos indígenas ou quilombolas que a Antropologia da UFSC tem se destacado pela ampla produção de conhecimento e atuação junto aos seus interlocutores, mas também em vários contextos urbanos, entre os quais, ressaltam-se os estudos no campo da Antropologia da Violência, cujos antropólogos têm sido demandados pelos órgãos de segurança pública do estado para realizarem cursos de formação, palestras e pesquisas. Igualmente no campo da Antropologia da Saúde, cujos trabalhos têm fornecido substantivas compreensões e suporte para elaboração e implementação de políticas públicas nessa área.

A listagem poderia se estender, mas abreviamos elencando apenas alguns exemplos que afiançam a seriedade, o reconhecimento e respeitabilidade que desfrutam os estudos e pesquisas antropológicos conduzidos na UFSC. Assim, são inaceitáveis as inculpações e infâmias lançadas contra seus profissionais, que só podem advir de quem desconhece sua qualificada e responsável produção de conhecimento, acumulada ao longo de décadas; ou de quem almeja desqualificá-la para, desse modo, infirmar direitos que foram inscritos na Constituição de 1988. É imperativo, portanto, impedir qualquer ingerência política sobre o trabalho técnico e científico do antropólogo.

No mesmo sentido é urgente que os parlamentares, como representantes do povo brasileiro, e não apenas de grupos políticos ou econômicos específicos, atualizem-se e conheçam com seriedade o trabalho que vem sendo feito por profissionais da Antropologia, tanto da UFSC quanto das demais universidades do país, e se imponham frente a inverídicas teorias conspiratórias de uns poucos parlamentares, que reconhecidamente pretendem tornar os territórios indígenas e quilombolas vulneráveis a interesses empresariais.

A UFSC garante a pluralidade ideológica, como parte universalmente reconhecida do ambiente universitário, mas os seus valores não são associados a qualquer ideologia em particular e sim aos valores do conhecimento científico e da democracia. Considera fundamental que se consolide em toda sociedade uma postura em favor da veracidade, dos princípios fundamentais da República, da luta pela igualdade na diversidade, para que possamos construir um Brasil verdadeiramente democrático, mais justo e plural.

A Antropologia produzida na UFSC, como demostrado, esteve desde a sua origem vocacionada a uma produção de conhecimento séria e colaborativa e, como sempre, estará pronta a cooperar nos esclarecimentos que conduzirão na direção da verdade, da Justiça, e da constitucionalidade.

Adicionalmente, esta Universidade alerta para esforços de grupos empresariais e políticos, contrários ao reconhecimento de direitos territoriais de indígenas e remanescentes dos quilombos, em favor do estabelecimento de uma falsa disputa ideológica e contra o exercício científico, ou contra o que determinam os ordenamentos legais que regulam a demarcação de territórios desses grupos no país, para, dessa forma, desvalidar direitos assegurados pela Constituição de 1988 e em legislação pertinente ao tema.

Por fim, e neste sentido, alertamos para a contaminação do exercício legítimo e democrático da investigação realizada no âmbito de uma CPI por interesses que extrapolam o domínio do interesse público, e que estão associados a demandas de grupos particulares. Alertamos, ainda, o seu eventual uso em favor de uma ofensiva desigual, violenta e inconstitucional contra os povos indígenas e quilombolas.

UFSC, 25.11.15.

[1] SANTOS, Silvio Coelho dos (org.). O índio perante o Direito. Ensaios. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1982; SANTOS, Silvio Coelho dos; WERNER, Dennis; BLOEMER, Neusa Sens & NACKE, Aneliese (orgs.). Sociedades Indígenas e o Direito: uma questão e direitos humanos. Ensaios. Florianópolis: Ed. UFSC/CNPq, 1985.

[2] LEITE, Ilka Boaventura (org.). Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: Nuer/UFSC/ABA, 2005.

[3] Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Protocolo de Brasília. Laudos antropológicos: condições para o exercício de um trabalho científico. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Antropologia, 2015. E-book.